• 02/05/2024

Corridas do medo: sequestros-relâmpago a motoristas de apps disparam no DF

Todos os dias, de segunda a segunda, durante a madrugada ou nos horários de pico, milhares de brasilienses entram em seus carros, ativam aplicativos de transporte no celular e deixam suas casas para percorrer o Distrito Federal levando passageiros. A cada aviso de uma nova corrida, os motoristas logo são tomados pelo medo e pela desconfiança. O temor dos trabalhadores não é em vão e encontra respaldo nos números indicadores da onda de violência que passou a assolar esses profissionais desde a criação das empresas do setor.

Segundo levantamento feito pela Polícia Civil do DF (PCDF),a quantidade de condutores das marcas Uber, 99 e Cabify vítimas de roubo com restrição de liberdade ou sequestro-relâmpago, como o crime é popularmente conhecido, saltou de 22 casos em 2017 para 71 episódios apenas nos seis primeiros meses deste ano.

Para se ter uma ideia, no primeiro semestre de 2018, foram computadas apenas 14 ocorrências policiais. Na prática, isso significa que, neste ano, todo mês praticamente 12 condutores são sequestrados durante corridas no DF. O balanço expõe a vulnerabilidade de quem depende do trabalho para sobreviver ou encontrou na atividade uma forma de conseguir mais dinheiro ao final do mês.

Os números podem ser ainda mais alarmantes, uma vez que a PCDF disse não ter recorte específico que aponte o total de motoristas vítimas de outros crimes. À reportagem, a Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF) atribuiu o aumento desses registros ao fato de que os criminosos estariam mantendo os condutores como reféns para evitar que a polícia seja comunicada sobre os delitos.

Pagamento em dinheiro

O delegado-chefe da Divisão de Repressão ao Sequestro (DRS), Leandro Ritt, por sua vez, defende não haver respaldo das empresas para com os colaboradores. “A partir do momento em que os aplicativos passaram a aceitar pagamento em dinheiro, houve afrouxamento no cadastro dos usuários. Antes, quando se pedia cartão de crédito para fazer a inscrição, não tínhamos esse problema. Atualmente, há uma grande preocupação no cadastro de quem dirige, pedem até o nada consta deles, mas não dos usuários. É um cadastro falho, pois os dados podem ser fraudados”, criticou o policial.

Um dos casos mais recentes ocorreu na sexta-feira (04/10/2019), em Ceilândia. Um motorista recebeu chamado para corrida na cidade quando foi surpreendido com anúncio de assalto por um adolescente e um homem ainda não identificados. Após ter o carro levado, o proprietário do veículo acionou a Polícia Rodoviária Federal (PRF).

Diante da denúncia, os policiais rodoviários se posicionaram às margens da BR-070 e, ao perceberem a passagem do automóvel, deram ordem de parada. Mas o condutor, percebendo o acompanhamento tático, aumentou a velocidade e passou a dirigir perigosamente. O criminoso ameaçou inclusive bater na viatura.

Em uma dessas manobras pela Via Estrutural, o assaltante perdeu o controle do carro, saiu da pista e capotou diversas vezes. Um dos ocupantes do veículo foi arremessado cerca de 30 metros e morreu no local. O outro sofreu lesões não aparentes, foi socorrido pelo Corpo de Bombeiros e levado para o Instituto Hospital de Base do DF (IHBDF), onde está internado sob custódia da Polícia Civil.

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Rota do medo

Ceilândia está longe de ser a única rota temida pelos motoristas. O posto de região administrativa mais perigosa para esse grupo de trabalhadores pertence a Samambaia. Sozinha, a cidade computou 32 casos nos seis primeiros meses deste ano, ou seja, 45% de todos os registros. Na sequência, estão Ceilândia, com 11% dos casos, e Taguatinga (8%) – as duas RA’s mais populosas da capital.

Para fugir da violência em Samambaia, motoristas passaram a se precaver. Um dos colaboradores, de 35 anos, afirmou perguntar o destino do passageiro quando o relógio começa a marcar horas mais tardes da noite. “Há lugares que só deixo passageiro, nunca busco. Taguatinga, Samambaia, Recanto das Emas e Riacho Fundo são alguns. Tentaram roubar meu carro em mais de uma ocasião. Tive que acelerar o máximo antes de me abordarem, fugindo com o passageiro dentro do veículo”, contou sob condição de anonimato.

Na contramão da onda de insegurança, Cruzeiro e Águas Claras, além do Setor de Indústria e Abastecimento (SIA), possuem os menores índices de violência e não contabilizam sequestros desde 2017, quando tiveram apenas uma ocorrência em cada.

“Presa fácil

Aos 48 anos, Izalene Ferreira se recusa a esquecer o dia em que temeu por sua vida e lutou incansavelmente para evitar que um casal de criminosos levasse seu único ganha-pão, o carro usado para rodar o DF. Nas mãos, a moça carrega até hoje as cicatrizes do que era para ter sido uma corrida rotineira de Taguatinga a Vicente Pires, mas que ao final do trajeto se mostrou uma emboscada armada pelos suspeitos.

Tudo começou quando o celular de Izalene bipou anunciando mais uma corrida. O local de origem era um bar da QNH de Taguatinga. No estabelecimento, um casal esperava pela motorista. Mesmo temendo por sua segurança, aceitou que a dupla entrasse em seu carro rumo à Rua 6 de Vicente Pires. Ao longo do caminho, os passageiros fizeram questão de minar a desconfiança da condutora. “Ele falava que era pedreiro, desde o começo se mostrou uma pessoa do bem e ela [a companheira] também. Eram bem suspeitos, mas não podemos discriminar”, explicou.

No entanto, ao se aproximar do destino final, um gesto do passageiro a alertou. “Perto da Rua 6, ele pediu para eu descer mais com o carro, até que entrei na Rua 4 e ele me mandou parar. Nessa hora, senti que seria vítima de um crime. Não deu outra, foi tudo muito rápido. Ele abaixou, pegou uma faca gigantesca e falou: ‘Isso não é uma simples corrida, é um assalto”.

Segundo Izalene, o assaltante prensou a faca contra sua barriga e, nesse instante, em um “ato reflexo”, pegou a lâmina com a mão esquerda, dando início à luta corporal com o criminoso. “É natural, estava lutando pela minha vida. Ele me batia no rosto, doía muito, mas arrumei uma força que nem sabia que tinha. Achei que fosse morrer. Em momento nenhum me passou pela cabeça de que conseguiria sair viva dali. A namorada tentou descer para ajudá-lo, mas a porta travou e ela não conseguiu entrar. Eu então vi que teria chance contra ele. Depois de muito, consegui pegar a faca, não sei como”, relata.

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Com a faca em punho, a trabalhadora passou a ameaçar o bandido até que ele fugisse do carro. A luta de Izalene pela vida chamou a atenção de moradores de um condomínio próximo ao local, levando-os a acionar a Polícia Militar, que, momentos mais tarde, conseguiu prender o casal ainda em Vicente Pires.

Após o episódio, a motorista foi levada ao Hospital Regional de Ceilândia (HRC). O resultado da “batalha”, como chama, foram 30 pontos não mão esquerda e um trauma irreparável. “Tento rodar ainda porque não quero viver com esse trauma, mas não é algo que pretendo continuar fazendo. Gostava muito do meu trabalho, mas é muito perigoso. Eles [as empresas de aplicativo de transporte] precisam rever as medidas de segurança que envolvem os usuários. Hoje, somos presa fácil para esses criminosos”, disse à reportagem.

“A dor ensina a gemer”

Leandro Ritt aponta uma mudança no perfil dos autores dos crimes. De acordo com o delegado, cresceu a quantidade de adolescentes cometendo sequestros no DF. “A DRS tem investigado alguns desses roubos em que os criminosos têm pedido senhas, os chamados sequestros-relâmpago, pois há extorsão. Trata-se de um crime de oportunidade, onde o ladrão sempre procura o elo mais fraco e os motoristas estão vulneráveis, infelizmente.”

Os trabalhadores desenvolveram técnicas para alertar os colegas das áreas de maior insegurança. “A dor ensina a gemer, os motoristas criaram grupos de WhatsApp onde trocam informações como forma de proteção. É um método eficaz, além do fato de que a experiência acaba os deixando mais atentos e preparados”, explica o policial.

Presente em 18 grupos criados para os profissionais do ramo, o presidente do Sindicato dos Motoristas Autônomos do DF (Sindmaap-DF), Marcelo Rodrigues, monitora de perto os casos de violência e, assim como Leandro Ritt, atribui a crescente insegurança aos sistemas e formatos de cadastros nos apps. “O aplicativo quer saber do lucro dele e o motorista que se exploda. Não há proteção aos parceiros, que fazem o aplicativo. Eles nos chamam de parceiros, mas não há nada de parceria nessa relação”, reclama.

Rodrigues cobra novas medidas para garantir a segurança da categoria. “Deveria haver um tipo de rastreamento dos carros ou até mesmo um botão de pânico de fácil acesso ao motorista para alertar autoridades policiais. Se o condutor tiver de pagar pela sua segurança, vai ficar insustentável. Ele já gasta com manutenção e gasolina, fora a taxa de arrecadação das companhias, que chega até 50% em alguns casos.”

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O que dizem as empresas

Em nota, a Uber disse usar tecnologia para bloquear viagens suspeitas. Segundo a empresa, a ferramenta usa algoritmos que aprendem de forma automatizada a partir dos dados e bloqueia viagens consideradas potencialmente mais arriscadas, a menos que o usuário forneça detalhes adicionais de identificação.

A empresa disse ter lançado, também, modalidade que reúne os recursos de segurança para motoristas parceiros, inclusive um botão para acionar a polícia em situações de risco ou emergência, diretamente do app.

A respeito do cadastro, respondeu que exige do usuário que quiser pagar somente em dinheiro informações como CPF e data de nascimento, que são checados na base de dados do Serasa. “Nossos parceiros contam com um número de telefone 0800 para registrar e solicitar apoio da Uber depois que tiverem comunicado incidentes às autoridades e estiverem em segurança”, frisou.

A Cabify, por sua vez, diz que “repudia qualquer ato de violência que ponha em risco a segurança de seus motoristas parceiros” e acrescentou: “A segurança é prioridade nas operações da empresa”. De acordo com a companhia, há investimento em tecnologias a fim de melhorar a segurança das viagens para passageiros e motoristas.

De acordo com a Cabify, em situações mais críticas, a empresa orienta aos seus condutores acionarem as autoridades responsáveis. Pontuou ainda que desabilita a função de pagamento em dinheiro em locais e horários específicos. “É disponibilizado, também, um Seguro de Acidentes Pessoais a Passageiros (APP) em casos de morte ou invalidez para todos envolvidos dentro do veículo que cobre despesas médicas. Afirma inclusive que mantém diálogo constante com o poder público de cada região em que atua com o objetivo de melhorar a segurança de suas operações e minimizar quaisquer riscos contra seus motoristas parceiros, taxistas e passageiros”, disse no comunicado.

Outra a defender a questão da segurança como “prioridade” foi a 99. O aplicativo afirmou ter diminuído em 53% o índice de ocorrências por milhão de corridas, na comparação de agosto de 2019 com o mesmo mês do ano anterior. Em 2018, o número de casos caiu 82% por milhão de viagens de janeiro a dezembro, segundo informou.

Para prevenir que os colaboradores sejam vítimas de crimes, a 99 garantiu que, antes das chamadas, os motoristas recebem informações sobre o destino, a nota do passageiro e se ele é frequente, além de o app pedir ao solicitante do percurso que inclua CPF ou cartão de crédito antes da primeira corrida. Os condutores podem, ainda, escolher não receber pagamento em dinheiro.

“Durante as corridas, existem câmeras conectadas à central de segurança do app e a possibilidade de compartilhamento de rota com parentes e amigos em tempo real. Para depois das viagens, a empresa possui uma central telefônica de emergência 24h, 7 dias por semana, que responde prontamente em caso de necessidade. Os motoristas estão protegidos em suas corridas realizadas pela 99. Desde o aceite até a finalização da viagem, eles são cobertos por um seguro contra acidentes pessoais”, finalizou.

(Metrópoles)

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