Isenção de tarifas para realização transferências, que promete colocar em xeque TED e DOC, é apenas uma pequena parte do impacto potencial.
Se você é cliente de alguma instituição financeira, ela provavelmente tem tentado convencê-lo nas últimas semanas a fazer o pré-cadastro no Pix.
O novo meio de pagamento eletrônico instantâneo que vem sendo desenvolvido pelo Banco Central será lançado em 16 de novembro e o registro começa agora em 5 de outubro.
A plataforma vai permitir a realização de transferências bancárias a qualquer hora do dia, em qualquer dia da semana e sem ônus — colocando em xeque a TED ou do DOC, que hoje podem custar mais de R$ 15, a depender do pacote de serviços do correntista.
O impacto potencial da mudança, entretanto, vai bem além da isenção das transferências. O Pix também tem vocação para substituir os boletos bancários e pode mudar a experiência de consumo no débito e em dinheiro em espécie.
Entre os especialistas, a expectativa em relação à magnitude das transformações que ele pode gerar na cadeia de valor dos meios de pagamentos eletrônicos varia.
De qualquer maneira, qualquer ponto percentual nesse mercado é muito coisa: por ano, ele movimenta cerca de R$ 1,8 trilhão, conforme os dados da Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços referentes a 2019.
Entenda, a seguir, como o serviço pode afetar consumidores, empresas e os protagonistas e coadjuvantes da cadeia de meios de pagamentos (a indústria de maquininhas, as operadoras de cartões e os grandes bancos).
Consumidores
Além da isenção de cobrança pelas transferências de recursos, uma das principais mudanças potenciais para os consumidores será a experiência de compra no boleto, no débito e em dinheiro.
Isso porque o Pix pode substituir essas três modalidades.
No caso do boleto, o pagamento passa a ser feito pelo aplicativo do banco ou de uma carteira eletrônica. Por exemplo: quando o cliente fizer uma compra pela internet, para efetuar o pagamento ele só precisará abrir o app e ler o QR code do Pix. Ao contrário do boleto, a transação é processada instantaneamente.
As compras em dinheiro ou débito seguem a mesma lógica. Em um estabelecimento comercial físico, por exemplo, o lojista pode gerar o QR code ou imprimi-lo e deixá-lo no balcão — como já acontece hoje em estabelecimentos que aceitam pagamentos instantâneos de carteiras digitais como PicPay ou Mercado Pago.
Para que uma pessoa física use o serviço ela só precisa ter uma conta corrente, conta poupança ou uma carteira digital, com cadastro no Pix. Esse cadastro é feito na instituição gestora da conta.
O cliente tem a possibilidade de cadastrar uma “chave Pix” para facilitar as transações — uma espécie de “apelido” que será usado para identificá-lo, como CPF, e-mail e telefone.
Com ela, não será preciso mais digitar os dados bancários do destinatário de uma transferência, por exemplo. É só colocar a chave Pix e a transação será efetuada.
A pessoa física pode ter “chaves Pix” em mais de uma instituição bancária, mas só pode ter uma modalidade por instituição. Se você cadastrou em CPF em um determinado banco, por exemplo, ele só pode ser usado como chave Pix naquele banco.
Empresas
A maior vantagem do Pix, na avaliação de Felipe Ahouagi, especialista em meios de pagamento da consultoria L.E.K, é para os recebedores.
A modalidade não será gratuita para pessoa jurídica. Ela terá um custo, mas muito menor do que aqueles nos quais se incorre hoje.
A cada venda feita no débito, um estabelecimento é cobrado por um percentual da transação, a “merchant discount rate” (MDR), composta por três tarifas: a de intercâmbio, que fica com o banco, a de bandeira, que vai para a bandeira do cartão, como Visa, MasterCard e American Express, e uma terceira, retida pela própria empresa que emite a maquininha.
A cobrança reflete os vários elos que essa cadeia tem hoje, dos quais o Pix não necessariamente precisa para operar.
Em uma venda feita por essa modalidade com QR Code, por exemplo, o consumidor pode pagar com o celular (ou seja, sem a maquininha), e a operação é processada pelo Sistema de Pagamentos Instantâneos (SPI), gerido e operado pelo Banco Central. Por isso o custo é menor.
“O estabelecimento comercial tem todo interesse em adotar, assim como autônomos”, avalia.
João Bragança, especialista em meios de pagamento da consultoria Roland Berger, avalia que, em um segundo momento, as médias e grandes varejistas também vão ter um grande incentivo para desenvolver a modalidade, já que muitas delas atuam como financeiras.
Algumas já entraram no ramo dos meios de pagamentos digitais, como as Americanas com a carteira digital Ame, a Via Varejo (dona das Casas Bahia) com o banco digital BanQi e o Magazine Luiza com a conta digital Magalu Pay.
Com o Pix, diz Bragança, elas teriam acesso a mais uma camada enorme de dados sobre os hábitos de consumo de clientes, o que lhes possibilitaria fazer ofertas direcionadas, por exemplo.
Além disso, poderiam atrair clientes potenciais que hoje estão fora do sistema financeiro — os chamados “desbancarizados”, que não possuem conta corrente ou cartão de crédito ou débito.
Outros potenciais ganhadores
Com a capilarização do Pix no varejo, quem também tende a se beneficiar são as carteiras eletrônicas, que passam a contar com uma rede de aceitação muito maior.
Grandes empresas de tecnologia, por sua vez, teriam oportunidade de entrar ou acelerar o crescimento na área de serviços financeiros, avalia o consultor da Roland Berger, enquanto os bancos digitais e fintechs teriam espaço não apenas expandir a carteira de clientes, mas consolidar a base que já têm.
Hoje muitos brasileiros que têm conta nessas instituições financeiras menores ainda concentram boa parte de suas movimentações nos bancos de varejo tradicionais.
Com o Pix, essa lógica poderia começar a mudar — e daí a movimentação dos grandes bancos, alguns com grandes campanhas publicitárias, para que os clientes registrem o Pix em suas plataformas.
“Todo mundo vai passar a disputar conta corrente (de clientes). A qualidade da oferta do serviço e a experiência do cliente vão ser críticas”, ressalta Bragança.
A “corrida para garantir a captura”, diz Ahouagi, da consultoria L.E.K., se baseia de lógica de que, uma vez dentro da plataforma do banco, seja ele tradicional ou uma fintech, o cliente tende a usar outros serviços.
“Com uma âncora de relacionamento (o Pix), eu tento vender todos os serviços bancários, abro a possibilidade de que ele possa fazer tudo em um lugar só.”
Impacto nos elos da cadeia
Os potenciais perdedores são aqueles que hoje lucram com os vários elos da cadeia de pagamentos: as “maquininhas”, conhecidas como adquirentes, as bandeiras de cartões e as processadoras, que prestam serviços operacionais ligados aos cartões e às transações.
Bragança estima que, em um cenário de sucesso com Pix (ou seja, de ampla adoção), com queda de 60% das vendas e aluguel de maquininhas e de 65% nas receitas com MDR, as empresas adquirentes perderiam quase R$ 9 bilhões em receitas.
No cenário mais adverso para essas empresas, a perda chegaria a R$ 13 bilhões.
Ahouagi também avalia que as margens do setor serão pressionadas. Mas pondera que a modalidade de crédito tende a ser pouco afetada, pelo menos neste primeiro momento.
Isso porque as transações pelo Pix são instantâneas. Há previsão de um Pix agendado, que poderia se assemelhar a uma operação de crédito.
A regulamentação do Banco Central estabelece, entretanto, que a oferta da modalidade pelas instituições financeiras é facultativa, que a transação não pode bloquear um limite da conta e que, caso o saldo seja insuficiente na data do pagamento, a operação será cancelada.
Ou seja, não há garantia de que o valor seria pago. Assim, pelo menos em um primeiro momento, o incentivo para os estabelecimentos comerciais é pequeno.
O consultor acrescenta que a perda de rentabilidade não é algo exatamente novo para algumas das empresas do ramo. Em 2009, o Banco Central quebrou o monopólio do mercado de adquirência, o que permitiu, na prática, a entrada de novas empresas em um setor até então dominado basicamente por Cielo e Rede. Com a maior concorrência, os preços caíram.
Desde então, o mercado de meios de pagamentos global vem passando por grandes mudanças, inclusive com o surgimento de novos meios de pagamentos, como as criptomoedas, as carteiras digitais e os money transfer operators, que têm mudado a lógica de remessa de recursos para o exterior.
Os pagamentos instantâneos, em sua visão, entram dentro desse contexto. Assim, Ahouagi estima que, em cinco anos, o Pix pode ocupar 11% do mercado de meios de pagamentos eletrônicos (o equivalente a R$ 440 bilhões, sem levar em conta a inflação do período), uma fatia bem mais modesta do que os meios de pagamento instantâneos tomaram na China ou na Índia.
Nesses casos específicos, pontua o consultor, o grande sucesso do sistema se deveu ao fato de que muita gente já estava habituada a fazer pagamentos pelo celular, caso da China, ou de que parte relevante da população não usava cartões, caso da Índia.
Para Bragança, a novidade pode representar uma mudança de paradigma na cadeia de valor dos pagamentos. O Brasil, diz ele, é um dos poucos países em que a autoridade monetária (o Banco Central) se envolveu ativamente no desenvolvimento da plataforma. A chance de que ele ganhe escala, nesse sentido, é grande.
Em países como os Estados Unidos, por exemplo, a rede de pagamentos instantâneos foi instituído por iniciativa de um grupo de empresas.
Qual o interesse da autoridade monetária?
O Pix, diz Ahouagi, é mais uma etapa da agenda de competitividade do BC — a mesma que quebrou o monopólio das maquininhas em 2009, que visa estimular a concorrência diminuir os custos de transação no país.
Além disso, a autoridade monetária também conta com a vantagem de que essa modalidade dá maior visibilidade às transações (especialmente àquelas que antes eram feitas com dinheiro em espécie), com rastreamento de ponta a ponta.
“Isso ajuda a reduzir a informalidade, a evasão de divisas, e a aumentar regularização do sistema”, afirma.
Segurança
Em um país cheio de modalidades cada vez mais criativas de cibercrime, a segurança é uma questão chave para a plataforma.
Bragança recorda que não houve uma padronização por parte do Banco Central. A questão da segurança é de competência das instituições financeiras. A lógica é a mesma das demais transações bancárias: os sistemas de mitigação de risco e as barreiras antifraude variam de uma empresa para outra.
No caso do Pix, por exemplo, além da segurança dos próprios aplicativos das instituições financeiras, elas podem colocar outras camadas — como, por exemplo, um limite máximo para realização de operação com o pagamento instantâneo.
O especialista alerta, contudo, que provavelmente devem aparecer casos de fraude, assim como acontece com praticamente todas as modalidades de pagamentos. “É o ciclo de vida de qualquer operação. É uma jornada de aprendizado.”
E deve-se ficar atento não apenas à possibilidade de golpes, mas também de erros cometidos pelos próprios clientes. Como o Pix é instantâneo, uma transferência ou um pagamento feitos por engano não têm garantia de ressarcimento.
Também ficará a cargo de cada instituição decidir como vão lidar com essas situações.
(BBC News Brasil )