Profissionais fazem atividades com crianças de educação infantil que saíram da escola e ajudam os mais velhos nas aulas online. Educadores se preocupam com a ansiedade para recuperar ‘conteúdo perdido’
Com escolas fechadas desde março, pais passaram a contratar professores para irem em casa ensinar os filhos, em pequenos grupos de amigos ou em aulas particulares. O que antes da pandemia era um serviço de ajuda apenas para alunos com dificuldades de aprendizagem, hoje tornou-se uma solução para a educação de crianças e adolescentes isolados por causa do coronavírus. Algumas famílias até já tiraram as crianças pequenas da escola infantil, outras acreditam que os estudantes precisam de ajuda profissional para lidar com as aulas online.
É um mercado que cresce rapidamente a cada mês de escolas fechadas. O Estadão conversou com algumas professoras que passaram a fazer o serviço e todas elas disseram que não têm mais horários e recusam novos alunos. Por causa da procura, a hora aula de um professor particular chega até a R$ 250 – ficava em torno de R$ 100 antes da pandemia.
O mesmo fenômeno acontece fora do Brasil. Nos Estados Unidos, pais de classe alta têm contratado tutores ou organizado o que eles chamam de “learning pods” (bolhas de aprendizagem), com a ideia de que aquele pequeno grupo de crianças está protegido porque as famílias estão isoladas. Para especialistas, apesar de ser uma solução compreensível em tempos de escolas fechadas, pais precisam ter cuidado com a ansiedade para controlar uma eventual perda de conteúdo em um momento de exceção como o atual.
Veridiana Viscardi, de 39 anos, começou este mês no novo trabalho. No meio do ano, por causa da pandemia, ela foi demitida da escola em que ensinou por 17 anos na educação infantil porque não havia mais alunos. Algumas das famílias procuram por ela pedindo ajuda e ela e o marido – também professor – resolveram investir.
Compraram materiais de todos os tipos e, quando vai à casa de seus alunos, Veridiana monta ambientes diferentes, com panelinhas, bonecos de pano, tecidos, blocos de madeira, livros. “Começo com uma roda, levo um mural de imã onde organizamos a rotina, plaquinha com os nomes das crianças”, conta, repetindo o que fazia quando dava aulas em escola. Veridiana e o marido – que dá aulas de inglês no fim das três horas do encontro – usam máscaras e higienizam os materiais.
Um dos seus grupos foi organizado pela administradora Amanda Pimenta Guerra, de 40 anos, mãe de Antonela e João, de 4 e 3 anos. Cansada de ver os filhos resistirem às aulas online, tirou os dois da escola. “A professora cantava pelo computador: o sapo não lava o pé, não lava porque não quer. E meu filho perguntava se podia sair”, conta. “Não funciona para a idade deles, estavam ficando ansiosos, vendo muita TV”. Ela então chamou três amigas – com a condição de que estivessem também isoladas – e formou um grupinho de 5 crianças para contratar Veridiana. A professora agora vai três vezes por semana ao condomínio onde Amanda mora para dar as aulas. “Eles vão até de mochilinha, comem lanche. No primeiro dia, eu até chorei de vê-los tão feliz”.
O debate sobre a educação infantil é uma das grandes polêmicas da pandemia, já que especialistas não recomendam muito tempo de exposição às telas para crianças até 5 anos. Fora isso, a educação para primeira infância se faz por meio da interação com as outras crianças, brincadeiras, algo difícil de ser transportado para o computador. Segundo a Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep), 90% dos contratos para crianças de 0 a 3 anos foram rompidos no País e há uma estimativa de fechamento de 30% das escolas.
Alfabetização
“As crianças estão já há muito tempo em casa, brincando com os mesmos jogos e os pais não estão 100% com eles, precisam trabalhar”, diz a professora Renata Gouvêa, de 28 anos. Ela também foi demitida de umas das escolas em que trabalhava, mas continua dando aulas online em outra, pela manhã. À tarde, atende crianças em casa. Uma delas é João, de 5 anos.
“Ele está na fase de pré alfabetização, eu via uma sede por aprender, por começar juntar as letras, querer ler. Eu não tinha didática alguma pra ajudar”, conta a mãe, a supervisora de loja Camila Wandke, de 35 anos. Ela diz que as aulas online duram 40 minutos por dia e não dão conta de ensinar tudo. Renata vai à sua casa, propõe desenhos, faz jogos e brincadeiras de letras, cores e números com João.
“Claro que nada substitui a escola, o ambiente alfabetizador, as outras crianças, mas é o que é possível fazermos agora”, diz a professora. Pais de crianças de 5 a 8 anos, período em que há atividades de leitura e escrita, são alguns dos que mais desconfiam da eficiência do ensino online. Educadores também manifestam preocupação com o déficit de aprendizagem durante a alfabetização, período crucial para o desenvolvimento da vida escolar. Agora, com a possibilidade de retorno presencial, Camila está em dúvida se mantém João apenas em casa com a professora particular ou se volta para a escola.
A pedagoga Arielle Botelho, de 28 anos, passou também a ajudar na alfabetização de irmãos gêmeos que estão no 2º ano do fundamental cujos pais desistiram do ensino online oferecido pela escola. Em outra casa, é o oposto, ela é o suporte justamente para as atividades passadas pela internet, que o menino de 6 anos não dá conta sozinho. “Além da preocupação com a aprendizagem, os pais não sabem mais o que fazer com o tempo dos filhos”, diz. Arielle tem recebido propostas de trabalho diárias.
Sensação de ano perdido
Para a educadora da Universidade de São Paulo (USP) Silvia Colello a professora particular é uma “alternativa dentro da conjuntura que vivemos” para pais que precisam de tranquilidade para trabalhar em casa. “As crianças têm uma atenção mais qualificada do que uma babá, é compreensível”, diz. Mas, por outro lado, ela se preocupa com a sensação de ano perdido de alguns pais que “não aguentam esperar pela proposta da escola e embarcam numa medida reducionista”. “Não se pode achar que um professor particular pode suprir a vida escolar. Por melhor que ele seja, ele não vai dar conta de todo um projeto pedagógico da escola, que é muito maior.”
Ismênia Ribeiro de Faria, de 49 anos, diz que chega a acompanhar alguns alunos durante as aulas online da escola. “Muitos ligam o computador e saem andando, os pais esperam também que eu ajude na disciplina”, conta a professora que dá aulas em casa para 10 estudantes durante a quarentena. “Tenho medo, meus pais têm 87 anos”, diz, sobre o coronavírus. “Mas tomo todos os cuidados, vou de carro, faço a higienização, não posso parar de trabalhar”.
A mãe de duas de suas alunas agradece sem parar o trabalho de Ismênia. “Foi a melhor coisa que eu fiz. Mudando a rotina, o padrão cai. Nosso cérebro é preguiçoso, não quero esse padrão para as minhas filhas”, diz a advogada Tatiane Garcia, de 39 anos. Antes de contratar Ismênia, ela tentou ensinar Izabella, de 7, Sara, de 10, em casa, com as atividades que a escola passava. “Fiquei com medo de traumatizá-las.” Hoje, a professora particular estuda com as meninas todo o conteúdo passado pela escola particular.
Homescholling
Nos Estados Unidos, além dos professores contratados, há também grupos de crianças estudando em casa em que os pais se revezam para ensinar algo que tenham afinidade. Em alguns Estados americanos, o homeschooling é permitido e há pais que tiraram os filhos da escola pública, de qualquer idade, e mantêm um sistema particular em casa durante pandemia.
No Brasil, crianças a partir dos 4 anos, pela lei, precisam estar matriculadas na escola. Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF), analisando o caso de uma família, reiterou que o homeschooling é uma prática ilegal no País.
Lá e aqui, questiona-se também a desigualdade que professores particulares, tutores e grupos fechados podem acarretar. Avaliações internacionais mostram que sistemas educacionais com mais equidade levam a melhores resultados de todos os alunos. “Famílias pouco letradas já têm condições mais limitadas para ler ou estimular corretamente uma criança, por exemplo. Elas estão cada mais se distanciando das que têm pais de classe alta”, diz o Diretor de Conhecimento Aplicado da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, Eduardo Marino.
Ao mesmo tempo que a pandemia aproximou pais e professores, com contatos mais frequentes pela internet, em outras famílias houve o rompimento, como aquelas que tiraram os filhos da escola. “O que preocupa mais nesse arranjo é a expectativa dos pais. Eles precisam ter clareza do sentido social de conviver com outras crianças e da contribuição do currículo escolar para a boa formação”, diz. “O desafio é não fomentar um desencanto pela escola”.
(Estadão Conteúdo)