Por Agência O Globo
O governo federal publicou nesta terça-feira decreto que autoriza os postos a venderem combustíveis, incluindo gasolina, de qualquer marca. Eles também poderão comprar etanol diretamente de produtores e importadores.
Veja também
Taxa de transmissão de covid-19 no Brasil é a menor em 10 meses
Para colocar estas ações em prática, o governo antecipou uma medida provisória do mês passado, que concedia prazo de 90 dias para que a Agência Nacional do Petróleo (ANP) definisse regras.
Entidades do setor temem que as medidas contribuam para aumentar a sonegação fiscal.
Atualmente, postos de combustíveis vinculados a distribuidoras só podem vender produtos daquela bandeira. Na avaliação do governo, ao permitir que comprem de qualquer fornecedor, o decreto deve aumentar a concorrência e exercer pressão pela diminuição dos preços em um momento de escalada da inflação.
No mês passado, a gasolina representou a maior contribuição para o IPCA, índice oficial de inflação, com alta de 2,8%.
Na avaliação de especialistas, porém, a iniciativa foi açodada e não deve surtir o efeito esperado, além de contribuir para a incerteza no setor, ao deixar de lado o órgão regulador em um debate de regras setoriais.
Os distribuidores seguem como únicos responsáveis por misturar o etanol à gasolina e o biodiesel ao óleo diesel. As entidades do setor e especialistas temem que as medidas resultem em aumento da complexidade tributária e em maior sonegação de impostos, sem maiores benefícios para o consumidor.
Há ainda o risco de judicialização do tema em razão dos contratos firmados entre postos e distribuidores.
Risco de fraude
Segundo o decreto publicado ontem no Diário Oficial da União, os postos deverão expor nas bombas de combustível a origem do produto.
Valéria Amoroso Lima, diretora executiva de Downstream do Instituto Brasileiro de Petróleo (IBP), diz que as medidas vão ajudar a desorganizar o setor:
— É preciso entender o motivo de tanta pressa do governo para permitir que os postos vendam combustíveis de diferentes marcas, já que a própria ANP já está analisando o tema e assim que tiver uma regulamentação vai trazer novas regras para o setor.
Além do risco de judicialização, Valéria lembra que a prática de vender combustíveis de marcas diferentes sem a obrigatoriedade de tancagens diferentes, por exemplo, pode trazer risco de fraude e propaganda enganosa.
Ela cita estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV) que aponta que o país já sofre com um total de US$ 24 bilhões de fraudes tributárias e operacionais no setor.
O diretor de uma empresa do setor destacou que a medida do governo representa uma perda para o consumidor, pois muitos postos poderão misturar os combustíveis, reduzindo os direitos do consumidor.
Esse executivo destacou que isso vai gerar judicialização até que a ANP defina novas regras, o que tende a ser um processo demorado.
Valéria, do IBP, criticou ainda a outra medida do governo que já prevê a possibilidade de venda de etanol diretamente entre produtores e postos sem a necessidade de um período de adaptação.
Estados precisam de tempo
Segundo ela, os estados precisam de tempo para definir as regras de cobrança de ICMS entre os produtores e os postos e como isso será feito:
— O setor está em uma briga entre governo e estados. Sem definir a regra de recolhimento de ICMS, pode sim ocorrer mais sonegação, uma vez que é mais um porta aberta.
Segundo o executivo de uma distribuidora, o ICMS é recolhido em parte pelas distribuidoras e parte pelo produtor. Com a nova medida do governo, os produtores podem não recolher o ICMS, pois cada estado terá de criar uma legislação, o que ainda não existe.
Na prática, isso tende a gerar perda de arrecadação para os estados e concorrência desleal entre os distribuidores. Por isso, a aposta é que haja também judicialização.
‘Vai quebrar um contrato?’
Para Paulo Miranda, presidente da Federação Nacional do Comércio de Combustíveis e de Lubrificantes (Fecombustíveis), as medidas são uma tempestade sem efeito prático, ou seja, sem resolver o preço ou fomentar a concorrência.
— Um posto tem um contrato com a distribuidora que prevê exclusividade. Então, qual posto vai quebrar um contrato? Por isso, a medida na prática não vai trazer mudanças — afirmou ele, lembrando que metade do mercado brasileiro de postos já é de bandeira branca.
Para Miranda, um dos principais motivos do preço alto dos combustíveis é o avanço do dólar, causado, sobretudo, pela instabilidade política. Ele citou a necessidade de alterar a cobrança do ICMS, que é estadual.
No ano, o preço da gasolina na refinaria acumula alta de 51%. Nos postos, o aumento passa de 30%, segundo o índice oficial de inflação. De acordo com a ANP, em três estados o produto é encontrado acima de R$ 7 por litro: Rio de Janeiro (R$7,059), Rio Grande do Sul (R$ 7,185) e Acre (R$ 7,130).
Sergio Araujo, presidente da Associação Brasileira dos Importadores de Combustíveis (Abicom), cita a complexidade logística para permitir que postos comprem etanol diretamente de usinas e importadores.
— Um importador compra e vende grandes volumes. Por isso, passar a comercializar pequenos volumes é complexo e não vai gerar redução de custo, pois o ganho é justamente no volume. O mesmo ocorre com as usinas, pois o posto precisa ter um caminhão específico para esse transporte. É uma logística complexa — destacou.
Segundo Sandro Maskio, coordenador de estudos do Observatório Econômico da Universidade Metodista da São Paulo (Umesp), de modo geral a medida não deve mudar as cotações nas bombas:
— As distribuidoras já têm a logística e escala do trabalho. Permitir ampla concorrência de venda direta provoca a reorganização da distribuição.
Procurada, a ANP disse que não comenta decisões do governo. Uma fonte do setor lembrou que o governo vem tentando centralizar decisões setoriais. A favor da venda direta a postos, a Unica, que representa os produtores de etanol, disse que aguarda as definições tributárias que a Receita Federal deve apresentar.