• 29 de março de 2024

“O feminícidio começa na intimidade”, diz delegada

” O feminicídio não é um crime como os outros”, sustenta Sandra Melo, delegada-chefe da Delegacia de Atendimento Especial à Mulher (Deam). Em um roubo ou assalto, a vítima vai prontamente à delegacia, registra a ocorrência e faz tudo o que estiver ao seu alcance para que o responsável seja punido. Nas situações de agressões contra a mulher, há um emaranhando de sentimentos que, muitas vezes, impede que o ciclo de violência termine antes de uma tragédia.

Na maioria dos casos, o criminoso vive com a vítima, é o pai dos filhos dela. Foi o homem por quem ela se apaixonou e com o qual dividiu projetos de futuro. Resultado: as agressões não chegam ao conhecimento da polícia – os casos são subnotificados – ou, quando as medidas protetivas são aplicadas, o descumprimento acontece em uma tentativa de reaproximação do ex-casal. “Quando a mulher quer romper, pretende que seja de forma amigável, em paz, espera poder conviver com o pai de seus filhos de forma civilizada”, relata. “Quando não quer, mantém a expectativa de que ele mude, que o relacionamento continue sem violência”, afirma.

O ciclo da violência 
Sandra, que tem prêmios internacionais pelo trabalho de proteção às mulheres, explica que no Brasil a violência contra elas é estruturante, é social. Numa sociedade machista, o homem acredita em padrões antigos: deve ser o provedor e o responsável pelas decisões. A mulher precisa ser submissa, focada em cuidar da casa e dos filhos. A Amélia que o espera com o jantar pronto no final de um dia cansativo.

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Mas a mulher atual quase nunca se encaixa nesse padrão. Elas são empreendedoras, provedoras e também encontraram outras aspirações que não as exclusivamente afetivas e familiares. “Isso vai causando um desequilíbrio na relação. O homem não consegue mais exercer o controle que gostaria. O casamento deixa de se encaixar no padrão que foi ensinado a ele. Aí começam os conflitos”, conta a delegada.

O ciclo de violência surge de forma quase imperceptível para a vítima. Disfarçadas de ciúmes, começam as brigas e as liberdades dela são cerceadas. A situação se agrava quando as discussões se tornam mais agressivas até que a primeira violência física é praticada. No momento seguinte, os empurrões evoluem para tapas, que evoluem para chutes e pontapés. O risco de morte, então, já está instalado dentro de casa.

Não acredito que os casos de violência doméstica estejam crescendo, acho que eles estão ganhando maior visibilidade. Hoje as mulheres aceitam menos uma situação que no passado estava naturalizada. O avanço da legislação nos impôs uma nova realidade. O brasileiro teve que enxergar e admitir que as mulheres são vítimas de uma forma grandiosa de violência praticada pelos homens que lhe são mais próximos

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SANDRA MELO

O papel do Estado
De acordo com a delegada, ainda que a agressão seja comunicada às autoridades e uma medida protetiva preventiva seja determinada, é comum que a vítima desista ou abra a guarda, aceite o pedido de conversa e acabe voltando ao relacionamento na esperança de que as coisas tenham mudado.

Durante o ciclo de violência, há uma queda drástica na autoestima de vítima, que passa a acreditar que não encontrará outro parceiro ou que merece as agressões. Esses são motivos pelos quais a mulher desiste do processo ou dá uma nova chance ao algoz. Na delegacia, ela normalmente é informada do grau de risco que corre, mas acaba cedendo. “O comprometedor é esse vai e vem. Em algumas situações, o agressor foi condenado, cumpriu pena e os dois voltaram a conviver. Esse homem não mudou. O problema continua o mesmo”, lamenta Sandra.

As medidas protetivas são importantes pelo papel profilático: todos os envolvidos entendem que estão em conflito e precisam ficar separados, evitar contato, até que se possa sentar para resolver o problema. “É um tempo para esfriar. Mas deixa de funcionar quando um deles rompe com o proposto”, complementa. A delegada defende a criação de uma rede de apoio para que as mulheres se fortaleçam e tenham segurança suficiente para romper com relacionamentos abusivos.

Quando acontece o pior e a notícia da morte de uma mulher chega às delegacias brasilienses, os policiais seguem uma regra detalhada de investigação (protocolo de feminicídio). As provas devem ser robustas o suficiente para instruir o processo pessoal. “O feminicídio é um crime de ódio, de vingança, de um homem que é completamente incapaz de lidar com sua frustração”, conta.

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Problema coletivo
É comum que as mulheres vítimas de violência doméstica só percebam que estão em perigo quando já correm risco de vida. A delegada afirma que não só a família mas também conhecidos, amigos e vizinhos que percebem as agressões devem, sim, meter a colher. “Os parentes e pessoas mais próximas precisam ter coragem para denunciar e ajudar a vítima, convencê-la de que a culpa não é dela”, ressalta Sandra.

Mulheres que estiverem passando por esse tipo de situação devem ligar para o número 180, que fornece informações sobre a rede de apoio. O 197, que funciona como disque-denúncia, também é uma opção para familiares, amigos e vizinhos que queiram denunciar algum caso de violência – a polícia vai até o local para apurar a situação.

“Precisamos entender que essa violência não é só daquele casal. É um problema que afeta a nossa sociedade, principalmente os jovens e as crianças. É necessário, cada vez mais, tomar alguma atitude antes que o pior aconteça”, conclui.

(Metrópoles)

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